sexta-feira, novembro 03, 2006

Martins, o Gentil

De como os chatos são intoleráveis

Em primeiro lugar, gostaria de deixar claro que me identifico bastante com o nome do Dr. Gentil Martins. Não só por Martins ser o meu sobrenome, mas também por apreciar a gentileza de trato de uma forma geral.

E, em boa verdade, Gentil Martins é a personalidade mais boazinha da nossa praça: aparece em todos os programas dando o exemplo de um velhinho agradável e bem-educado, de senhor respeitável e honesto, de marido respeitador e pai extremoso, de homem regrado e saudável; um herói estóico, um modelo para todos nós.
No entanto, apesar de não se lhe poder apontar uma só mácula, o Dr. Gentil Martins, eminente cardiologista, não pode ser figura do meu agrado. Perdoe-me essa sumidade, mas não o suporto nem por nada.
É isso mesmo: não quero ser como o Gentil Martins. Não quero ser o Nuno Rogeiro do anti tabagismo, não quero ser o Maestro Vitorino da roda dos alimentos. Não!
E digo-lho a si, Doutor – não vou deixar de fumar por me aparecer em casa, na programação vespertina da televisão, a enumerar-me os malefícios do tabaco.
Não, não vou começar a beber leite Pleno só porque o Dr. mo aconselha num anúncio, com uma voz angelical, enquanto almoço.
Não, Shôtor, nunca vou ter um organismo impecável como o seu, só porque, no Telejornal, Sua Reverência me garante que nunca bebeu um copo, que faz da roda dos alimentos a sua Bíblia Sagrada e que, por isso, é mais feliz do que eu.
E NÃO, não vou começar a fazer jogging todo o santo dia, só porque o Sr., cheio de alegria, me diz que vou viver mais uma mão cheia de anos se o fizer.
Desculpe, Dr., mas não acredito em si.
Não, não vale a pena descrever-me a sua radiante alegria de viver. É escusado, não acredito em si.
Na verdade, nem sequer gosto de si.
Meu Deus, como o detesto.
Largue-me, não me mostre o seu diploma. Não quero ver a sua assinatura por baixo do Juramento de Hipócrates.
Não mo mostre, é claro que o Dr. é contra o aborto. Já o sabia.
Tu és previsível, pá!
Previsível e enfadonho. Oh, como és chato.
Larga-me, não me digas que defendes a vida. A tua vida é tão entediante que dela não esperas mais do que longevidade, extensão.
Ai não sabias que a vida podia ser melhor com um ou dois viciozinhos? Vá, experimenta, meu palerma.
Não, já sei. És muito perfeitinho para ser feliz. És um caso perdido. És um triste. Estás condenado, deixa lá. Puxa o lustro ao teu diploma, opera-te a ti próprio, aparece na TV. Sorri com moderação.
Nunca vais deixar de ser uma sombra. Insuportável e irremediavelmente chato.

Há vida para além do número

A mais recente reserva dos adeptos do NÃO em relação à despenalização da IGV é a seguinte:
“A barreira das dez semanas é absolutamente ridícula. E então – perguntam – e se o feto tiver dez semanas e um dia, as mulheres ainda poderão abortar, ou já serão criminosas a deter e condenar?”.

Esta questão é colocada com tal indescritível brilhantismo, com uma tão aguçada astúcia e pertinência, que se nos impõe de forma absolutamente necessária a conclusão de que não se poderá fixar nenhuma data para abortar.

Aliás, faremos mais: começaremos desde já a ampliar esta luminosa descoberta a todas as aplicações possíveis.
Deste modo, não hesitaremos em exigir, desde já:
1) Que seja impedida toda a relação sexual de qualquer espécie entre pessoas que tenham nascido em instantes diferentes, uma vez que a data de início da adolescência – compreendemo-lo agora – não se pode demarcar facilmente e, também, porque a diferença de idades permitida para uma relação entre um adulto e uma criança/adolescente, não pode ser definida com rigor. Só assim podemos prevenir verdadeiramente a pedofilia…
2) Que seja obrigatório o uso de uma cadeirinha no assento do carro, seja qual for o peso de cada um – pois não será artificial a distinção de uma cadeira até 15 quilos e outra para 15 ou mais? Então e se forem 15 quilos e um grama?
3) Que seja imediatamente proibida a prisão de pessoas de qualquer idade, uma vez que, pela mesma ordem de ideias, não se pode definir com rigor o início da vida adulta – e certamente não queremos ver crianças na prisão…
Também por estas razões, será proibida a venda/consumo/frequência/aquisição/celebração de: discotecas, armas de fogo, álcool, carta de condução, filmes de cinema, crédito bancário, casamento, entre outros.

Deste modo, exigimos a remoção imediata e incondicional de qualquer factor quantitativo, pois não aceitamos leis com a artificialidade de uma divisão exacta entre dois números. Empenhados nesta causa, salvaremos o Direito da mesquinhez da exactidão sem sentimento, e reporemos a Verdade que move quem ama a vida.